Nietzsche e Deleuze: Bárbaros e Civilizados
A título de conclusão, gostaria de retomar a anotação do jovem Nietzsche sobre a oposição entre cultura e civilização, com a qual se iniciou esse texto: civilização era tomada ali no sentido de policiamento civil em oposição à autêntica cultura do espírito. Portanto, a civilização estaria ligada às formas de produção e reprodução da vida material, sobretudo ao bem-estar, asseio, boas maneiras, adestramento, conforto em matéria de habitações, vestuário e meio ambiente. Tudo isso poderia ocorrer, como de fato ocorria entre os povos do oriente asiático, sem que se sentisse a necessidade de esclarecimento superior do espírito, ou seja, de cultura, em sentido estrito. Isso significa que se pode ser muito civilizado, inclusive muito polido e sociável, sem que se sinta a menor necessidade ou se exiba o menor vestígio de cultura superior. É por isso que nossa moderna barbárie civilizada mergulha a sociedade dos últimos homens na fruição de anódinos prazeres idênticos e acessíveis a todos, a serem gozados com moderação e prudência. Nas palavras irônicas de Zaratustra, nós inventamos a felicidade, dizem os últimos homens, e piscam o olho. Civilizadamente, degradamos o ideal de felicidade na falsa moedagem ideológica do bem-estar, da segurança, do confort, da ausência de tensão, de atrito, de conflito, na espiral intensificada do consumo ininterrupto, onde nos oferecemos em sacrifício voluntário ao ídolo Mercado, no templo profano dos shoppings centers, o sucedâneo atual do desejo bovino de felicidade na calmaria das verdes pastagens. Justamente no extremo oposto, Nietzsche situa os instruídos áticos que, quase até ao ponto da admiração, desprezavam como insignificante aquilo que, em virtude de nosso amor pela ordem em geral, costumamos apreciar como o fundamento da nobreza espiritual. Essa passagem nos revela como cultura, em sentido autêntico, se opõe tanto à barbárie quanto à civilização, sobretudo na acepção burguesa que estivemos trabalhando até aqui.
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